quarta-feira, 25 de agosto de 2021

BOI ARUÁ, por Wilson Lazaretti



Wilson Lazaretti nos traz novo texto, agora sobre o longa-metragem Boi Aruá, de Chico Liberato.

 

Boi Aruá

Chico Liberato com o seu BOI ARUÁ nos aponta para a lua, enquanto que alguns ainda olham para a ponta do seu dedo. Algum sábio chinês disse coisa parecida há alguns milhares de anos, porque a sabedoria é mais velha do que a gente imagina.

Mas o BOI ARUÁ é uma animação difícil e densa, porém de uma esplendorosa beleza. Tive de assisti-lo várias vezes para tentar pegar aquele boi. Confesso ainda que, pela minha falta de bravura para pegar um boi como o fazem os vaqueiros experientes do Grande Sertão Brasileiro, ainda não o consegui. Creio que aí está justamente a beleza cativante desta grande animação. Talvez o medo seja mais importante do que a coragem. O medo permanece e nos constrói, a coragem vai logo embora. Não tem a mínima graça ser corajoso fora dos contos de fada.

Neste filme vejo também, como no ANIMANDO de Marcos Magalhães, uma perfeita simbiose entre o BOI ARUÁ e CHICO LIBERATO E ALBA. São diferentes os propósitos de ambas as produções, mas quem compara duas coisas não entende nem de uma nem de outra.

A partir do momento em que conheci Chico e Albapessoalmente, o filme ganhou uma outra dimensão. Cada pensamento, palavra e obra do Chico e Alba me fazem penetrar ainda mais no contexto do filme, como fosse a sensação à beira de cometer um grande pecado. Pecar, considero uma virtude. E o que mais os animadores deveriam ser, senão pecadores convictos?

Entender e sentir o comportamento do homem nordestino é predispor-se eentregar-se à narrativa do filme, com um detalhe: desfazer-se daquilo que mais tem de difícil na natureza humana, desvencilhar-se dos preconceitos, muitos dos quais nos foram impostos desde quando éramos crianças. Pensando bem, ninguém tem culpa, porque a sociedade pensa como uma massa única e o que é bom para a massa pode não serbom para um indivíduo.

Entretanto, assistir ao filme não é tão simplesmente fácil para quem está acostumado à monocórdica animação convencional e a de seus adeptos. Ela foi concebida para os espíritos mais abertos, ou pelo menos para aqueles que querem usufruir de seu espírito aberto. Diria melhor, ela foi concebida para Chico e Alba primeiramente e posteriormente para o povo que habita o Sertão, que vê e sente nessa animação, o espelho de sua própria vida com suas harmonias e sofrimentos. “Mas quem canta a sua rua, canta o universo”, disse Trotsky.

BOI ARUÁ é seriamente universal. Seria bom que as gerações passadas de todas as regiões do grande Brasil, através deste filme, tomassem conhecimento sobre o povo que vive sobre este solo. As gerações futuras iriam agradecer-lhes.

BOI ARUÁ segue a tradição da linguagem cinematográfica, mas não a respeita, porque pecar é o propósito fundamental do animador. O filme também segue os padrões da mecânica de animação tradicional, mas fundamentalmente os desrespeita, porque tal atitude também é primordial para um animador de qualquer idade.Aliás, ninguém é tão velho que não possa rejuvenescer, nem tão jovem que não possa envelhecer!

Uma das cenas do filme de rara beleza é a cena dos vaqueiros se preparando para pegar o BOI ARUÁ.Tal cena perdeu sua linguagem cinematográfica e enclausurou-se na minha mente. O frágil ser humano, que ali nos representa,  lança-se de uma indumentária medieval fantástica, não só para proteger-se contra o BOI,  como também para proteger-se contra si mesmo. Está claro que nos dias de hoje o homem é seu pior inimigo. A cena é uma verdadeira preparação para uma Cruzada da nossa era. Vejo nela o homem correndo atrás de um ente abstrato, mas o abstrato aqui é um boi. A música renascentista é belíssima e é de Elomar. Composta num alinhamento dos planetas de Chico, Alba e dele próprio. Acho que este momento todo é simplesmente delirante e não sabia o quanto de identificação com ele eu tinha. Vamos colocar nossas armaduras para lutar contra as nossas frustrações. Geralmente não as vencemos, mas penso que é mais fácil colocar um sapatinho no pé de uma garotinha pobre de um conto de fada do que enfrentar um boi abstrato.

Com a animação de Chico e Alba, aprendi mais uma coisa sobre aquilo que a aridez do sertão provoca no comportamento e caráter do ser humano. Isso está muito claro no filme: depois da agonia, autoritarismo, fome e desamparo, vem a chuva para lavar a alma e trazer o conforto tão esperado. Ali entra uma sinfonia belíssima de Ernest Widmer, num tom esperançoso que aumenta ainda mais o grau do nosso delírio.

Além disso, conhecer Chico e Alba, não tratou apenas de um aperto de mão (naquela época era esse o costume dos povos), mas da fundação de uma amizade, que senão eterna, pelo menos infinita.

Para a Bahia não se vai, a gente para lá é conduzido. E por diversas vezes estive em solo baiano para ainda mais conhecer e penetrar no seu contexto criativo.

Entre muitas passagens que desfrutamos juntos, uma foi a visita a um  terreiro de Umbanda ou Candomblé. Um cultoem que vi muita humildade, respeito e cerimônias seríssimas. Diga-se de passagem, o Panteão das Entidades de Matriz Africana e Indígenasão de Deuses mais próximos dos homens, naturalmente um meio mais direto de compreender um e outro. Compreendi que um Deus Pantocrator (todo poderoso) serve ainda mais para afastar os homens de si mesmos, enquanto que os Deuses dos terreiros estão bem ali ao nosso lado. Mesmo não sendo eu um acreditador de boa vontade, senti a proximidade destes Deuses.

Recentemente fiquei cheio de alegria quando presenciei no noticiário da TV, o jogador de futebol PAULINHO, que após marcar um gol, fez o gesto de arco-e-flecha representando um Orixá. Considero um ato de muita relevância em meio às commodities religiosas que se vendem em nossos tempos. Talvez, se não tivesse tido o contato com Chico e Alba, um gesto deste me passaria despercebido.

O BOI ARUÁ é muito mais do que um desenho animado, acho que é um panteão onde os animadores convictos de seus pecados podem rezar, orar e desenhar. Obviamente cada um tem a sua maneira de entender ou de se recusar a entender o que as religiões pregam, mas deveriam fazê-lo com mais cuidado e quem desenha está isento de exercitar esta reflexão.

Enfim, BOI ARUÁ me trouxe uma grandiosa experiência, principalmente aquela que me ensinou que animação não é simplesmente a arte de representar o movimento, mas sim de ser o próprio movimento.

 



Wilson Lazaretti

19 de agosto de 2021.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Não perca a participação do Núcleo no ExperimentAnima





O Núcleo de Cinema de Animação de Campinas marca presença no ExperimentAnima - II Encontro Nacional de Animação Experimental, que acontece entre os dias 23 a 27 de agosto, de forma online e gratuita. 
O ExperimentAnima é um evento técnico científico, ligado à Universidade Tecnológica Federal do Paraná, que promove a divulgação e discussão de trabalhos sobre animação e de animação. 
A palestra Iniciativas para produção e registro da animação experimental e/ou autoral terá a presença de Maurício Squarisi e Wilson Lazaretti no dia 26, às 16h, com transmissão no Youtube.






E tem muito mais! Vale a pena conferir a programação completa. A Mostra de Animação, por exemplo, vai começar no dia 27 de agosto, sexta-feira, às 14h. Entre os trabalhos selecionados na categoria de educação, está o primeiro curta do AnimaFísica, o Quarks e Léptons, dirigido por Mauricio Squarisi.

Veja a lista de todos os filmes:



Nas apresentações de TCC, o aluno de Artes Visuais da Unicamp, João Pedro Felipe Silva, mostra seu trabalho, orientado pelo prof. Wilson Lazaretti:



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quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Wilson Lazaretti participa do podcast “A Voz dos Animadores”

 


Com participação do diretor do Núcleo de Cinema de Campinas, Wilson Lazaretti, o podcast “A Voz dos Animadores” já está disponível no Spotify.  

Fazendo um passeio pela produção de filmes de animação em Mato Grosso do Sul, desde as primeiras realizações, nos anos 1980, até os projetos já lançados e em preparação, o programa é concebido, produzido e apresentado pelo escritor e roteirista Ricardo Câmara, em codireção com o cineasta Joel Pizzini, edição e produção musical de Léo Copetti.  

São cinco episódios, no formato de sala de bate-papo, com a participação de nomes representativos do audiovisual de MS. Figuras como o cantor e compositor Geraldo Espíndola e os realizadores Celso Arakaki e Wilson Lazaretti contam suas experiências nesse segmento. 

Ouça agora o especial e último episódio, com a participação de Wilson Lazaretti: 


terça-feira, 17 de agosto de 2021

40 anos de ANIMANDO, filme de Marcos Magalhães

 


Prestes a completar 40 anos de sua produção, o filme ANIMANDO, de Marcos Magalhães, é tema do texto que publicamos abaixo, escrito por Wilson Lazaretti.

ANIMANDO

Filme de Marcos Magalhães de 1983

Animação e filmagem foram feitas em Montreal/Canadá de outubro de 1981 a março de 1982; a sonorização em Outubro/Novembro de 1982 no Rio de Janeiro, mas o filme só foi finalizado e lançado em 1983.

O início da produção desta obra está fazendo 40 anos. Nada mais justo do que comemorar a sua realização. É um dos filmes mais preciosos para entender o procedimento e processo de animação. É considerado como um dos livros que compõe a Bíblia da Animação que correm pelo mundo afora. Em qualquer festival de animação, você ouve falar dele. Seria quase um “Pelé” da animação. Demonstra as técnicas com as quais se podia realizar um filme de animação à época (década de 1980). Diga-se de passagem, até hoje se pode realizar filmes com as mesmas técnicas.

O filme é resultado de uma bolsa da CAPES, com a qual Marcos Magalhães foi contemplado. Para a nossa alegria o filme foi produzido na NATIONAL FILM BOARD OF CANADA, uma das instituições mais importantes do mundo dedicada à animação e também com o apoio da EMBRAFILME, uma empresa estatal brasileira para a produção de filmes de vários gêneros.

Vamos destrinchá-lo porque vale muito a pena. A indicação numérica segue a ordem do filme:

1)            O filme foi realizado em película cinematográfica 16mm.

2)            O título ANIMANDO e os demais créditos de todo o filme foram feitos com iluminação por debaixo da mesa de filmagem. As letras eram transparentes e recortadas sobre um fundo preto. A luz que vinha por debaixo da mesa dava cor às letras. A animação do título foi feita descobrindo-se as letras pouco a pouco e quadro-a-quadro. Geralmente usava-se um fotolito para as cartelas contendo os créditos.

3)            O som dos passos também é importante. Não tem imagem, pois a tela está negra, mas o som ali cumpre a função de nos aguçar a expectativa.

4)            A partir de quando ele abre a porta, já temos ali a primeira técnica de animação, pois a câmera funciona quadro-a-quadro. Na verdade, ele tem de parar, “brincar de estátua”, para que a câmera capture sua imagem. Ele tem de permanecer estático durante a tomada da fotografia. Esta técnica de animação é muito utilizada, inclusive cientificamente, como, por exemplo, para observar uma rosa desabrochando, para estudar decomposição de materiais biológicos e também de metais. “KOYAANISQATSI” é um filme que utiliza muito esta técnica de animação.

5)            No plano seguinte ele caminha em direção à mesa de filmagem. A câmera de filmagem está presa sobre a mesa. A iluminação é calibrada, lateral e de ambos os lados, para se ter uniformidade em toda a superfície a ser filmada.

6)            Em seguida ele pega a primeira folha de papel e a fixa sobre a mesa. Esta mesa tem uma régua de três pinos, um redondo no meio e dois laterais. Esta régua de pinos é um padrão internacional, tem medidas específicas. Vejam que a sombra do pino redondo tem a mesma intensidade de ambos os lados, o que significa que a iluminação lateral está correta.

7)            Então é feito o primeiro desenho. Observem também que a mesa gira para dar maior comodidade ao animador.

8)            A segunda folha de papel é colocada sobre a primeira, onde, devido a uma acentuação da transparência do papel, que não aparece no filme, pode-se enxergar sem dificuldade o que foi desenhado na primeira folha.

9)            Observem também que a técnica de filmagem do próprio Marcos é a mesma de quando ele chegou na sala de filmagem, ou seja: ele tem sempre de posar estático para a tomada da fotografia pela câmera de filmar. Ele tem de ir levando, quadro-a-quadro, a folha de papel até prendê-la na régua de animação. Ele faz isso sucessivamente até completar o ciclo do passo. O modelo de câmera utilizado para as filmagens tinha um dispositivo quadro-a-quadro que o próprio Marcos acionava na caixa de comando da câmera que fica do lado esquerdo do animador.

10)         Os desenhos são numerados no canto superior direito, ao lado do pino retangular, que evidentemente não aparece na filmagem. Neste caso, a câmera foi enquadrando o desenho corretamente, isto é, realizou um movimento de “ZOOM IN” (uma aproximação). A caixa controladora da mesa controlava a câmera e a mesa ao mesmo tempo. A câmera podia levar a película para frente e também marcha à ré, mover o obturador para abri-lo ou fechá-lo. Para movimentos de ZOOM IN e ZOOM OUT já era um movimento da mesa e você já viu que o disco da mesa também gira. Todos estes movimentos estão contidos em quase todos os programas de animação que conhecemos, sendo, portanto, muito mais fácil a sua execução.

11)         A aceleração da filmagem significa que os intervalos entre uma pose e outra foram sendo maiores, até que a mão dele é retirada de cena e passa a ser, realmente, a técnica de desenho animado. O ciclo do passo se repete por várias vezes. São sempre os mesmos desenhos. As animações cíclicas sempre dão uma força na animação, economizando trabalho gráfico.

12)         Em seguida, volta-se à técnica quadro-a-quadro ou, se preferirem, “stop motion” de pessoas, ou ainda pixilação, que vem do inglês pixilation. O material utilizado agora é opaco de longe, mas transparente de perto. É o acetato.

13)         Este acetato era um material caríssimo, disponível apenas para quem tinha muito dinheiro para a produção. Todos os desenhos, feitos a lápis, eram novamente traçados sobre o acetato com tinta nanquim.

14)         Vejam que o traçado sobre o acetato também foi filmado quadro-a-quadro e temos a impressão de que ele está em movimento.

15)         Agora o desenho já transparente pode ser colocado sobre qualquer cenário. No caso desta animação, e como geralmente era, os cenários eram fixados na régua de baixo e a animação na régua de cima. Eram geralmente duas ou três vezes maiores no comprimento para possibilitar o movimento PAN (panorâmico, na verdade é um TRAVELLING. A diferença: PAN a câmera gira sobre um eixo e TRAVELLING, a câmera acompanha paralelamente o assunto a ser filmado).

16)         Após o traçado, os acetatos eram pintados no seu verso para que a tinta ficasse chapadinha quando vistos do lado da filmagem. Mais uma vez, os grandes estúdios utilizavam tintas especiais, próprias para aderir à superfície do acetato, que era um material plástico. Aqui no Brasil, utilizávamos tinta látex branca misturada com corantes. Hoje este processo é totalmente digital, desde a própria animação até a pintura.

17)         Mas o Marcos fez, inteligentemente, uma alusão aos custos dos materiais, fazendo com que o seu boneco ficasse insatisfeito com aqueles artigos de luxo para um simples animador independente. Como observei em aula, os animadores têm um quê de humildade e ela se manifesta em toda a sua obra.

18)         Aí o personagem volta para o papel e recebe lápis de cor. Observem novamente que a técnica é quadro-a-quadro.

19)         Mais uma vez a câmera enquadra corretamente o personagem, ou seja, realizou um ZOOM IN.

20)         A partir da palmada sobre o desenho, ele muda de técnica, a qual chamamos de animação de recortes. Esta técnica tem uma plástica diferente, parece menos suave do que um desenho animado, mas tem sua razão de ser. Uma delas (na época) era substituir o acetato e poder utilizar cenários diversos e abrir novas possibilidades. Vocês vão ver que a técnica empregada depende, evidentemente, do domínio dela, mas sobretudo do que se quer dizer com ela. Isto é, depende também do assunto que se quer expressar em animação.

21)         As figuras são recortadas, representando seus principais movimentos, ou até podemos chamar de posições chaves (KEY FRAME).

22)         Agora vem a técnica de pintura sobre vidro. No caso do Marcos é a mesma mesa de animação e a superfície é um acrílico leitoso branco. Existem grandes filmes de animação, os quais considero de animação acadêmica, como por exemplo O VELHO E O MAR de Alexander Petrov, que utilizam esta técnica.

Marcos recebeu uma dica da animadora americana Caroline Leaf para diluir a tinta guache com glicerina em vez de água, para evitar que a tinta secasse e permanecesse maleável durante todo o processo da animação de uma cena.

23)         É uma técnica um pouco complicada para a época em que o filme foi realizado, pois não contou com a referência da figura anterior e o animador tinha de usar a sua MEMÓRIA MUSCULAR para animar. O que observamos no Marcos é que há uma profunda simbiose entre ele e seu personagem, ambos se conhecem muito bem: um dado muito importante para o animador, como também já disse para vocês. O reconhecimento do autor e sua criação é fundamental para a animação.

24)         Em seguida temos a animação com areia com a iluminação por cima da mesa de filmagem. A simbiose funciona também aqui. Acho muito legal que o entorno da figura também se move, o qual considero o tempero deste tipo de animação.

25)         Agora a mesma técnica é iluminada com a luz por debaixo da mesa. Esta técnica chamamos de sombra chinesa, muito utilizada com recortes opacos pela animadora alemã Lotte Reiniger na década de 1920. Vale a pena estudar a obra dela, porque a simbiose está presente nela também.

26)         O barbante também é utilizado da mesma forma. Uma dica para animar os barbantes: Marcos os borrifava com água para que ficassem úmidos e mais “obedientes” à manipulação para modelar cada posição da animação. A luz por debaixo da mesa dá-lhe uma nova plástica para a animação. Ali, Marcos já ensaiou a construção de uma narrativa, estabelecendo um conflito entre o personagem e a tesoura.

27)         Ainda com a câmera sobre a mesa ele introduz a técnica de animação de massinha. Observem novamente a iluminação uniforme aplicada sobre a animação.

28)         Agora a câmera está em outra posição (em um tripé), capturando o boneco de outro ângulo. Marcos no início utiliza a mesma técnica quadro-a-quadro. O que é importante notar é o grande ensinamento de Norman McLaren, que dizia: o movimento, em qualquer técnica de animação, é criado no intervalo entre uma posição e outra. Na verdade, “acontece” quando ele retira a mão após posicionar o boneco para a próxima tomada. Este intervalo pode demorar alguns segundos, mas geralmente demora mais, talvez até horas e mesmo dias entre uma posição e outra. E é este intervalo o momento da criação do movimento, talvez o mais sagrado templo do animador sob o qual se abriga para realizar suas animações.

29)         Mais uma vez, com esta técnica, o Marcos surpreendeu, mostrando bem que o personagem fez uma passagem entre as técnicas de 2D para 3D e que o personagem estranha muito o ocorrido. Na verdade, é uma outra dimensão mesmo.

30)         Bom, o que mais se podia ele fazer, a não ser descobrir uma outra técnica, desenhando diretamente sobre película cinematográfica 35mm? Obviamente, Marcos não descobriu nem inventou esta técnica, que antes foi utilizada por muitos animadores experimentais como Len Lye e Norman McLaren. Estas cenas são homenagens aos dois, principalmente a McLaren que era o tutor da minha bolsa. Ele está arranhando a película 35mm que está velada. Fez umas referências gráficas que colocou ao lado da película para servir-lhe de guia. Mas sabia que, a cada quatro perfurações do filme, correspondia a uma imagem.

31)         Agora a técnica é a mesma, mas o suporte é a película cinematográfica transparente. Claro, esta foi revelada em laboratório para tornar-se transparente. A tinta utilizada era, geralmente, nanquim, mas de qualquer forma, tinha de aderir bem ao suporte. Hoje em dia pode-se usar caneta para retroprojetor que funciona muito bem.

32)         No final, mais uma vez é utilizada a técnica de filmagem quadro-a-quadro. Aqui vocês percebem novamente a simbiose entre o personagem com o seu criador.

Wilson Lazaretti

Núcleo de Cinema de Animação de Campinas

Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, LIS Laboratório de Imagem e Som/ Instituto de Artes/Departamento de Artes Visuais/

12/08/2021

Veja o filme: https://vimeo.com/178249990




E aqui, você vê o depoimento do Marcos Magalhães:

Fico muito feliz em constatar que comecei a animar meu filme ANIMANDO há 40 anos e ele continua vivo e jovem!

Ele foi feito com uma alegria e uma inspiração muito reais, já que eu estava realizando o sonho de produzir um filme em meio aos animadores mais geniais do planeta, todos em plena atividade no NFB em Montreal. Hoje sei que aquela foi uma época de ouro, quando Norman McLaren finalizava seu último filme e eu podia conversar com ele e outros autores como Paul Driessen e Caroline Leaf nos corredores ou na cafeteria do estúdio!

Terminei a animação achando que ele nem precisava de trilha sonora - ele até participou de um festival em Ottawa ainda em versão muda, e me disseram que foi muito bem recebido! Mas logo que pude, de volta ao Brasil, chamei um bando de músicos feras para tocarem no estúdio assistindo a cada cena do filme. Eu toquei piano (sou o "Marcos Amarante" dos créditos, mas quem tocou o Debussy da primeira cena foi o Caio Senna). Adoro a trilha, sou até hoje grato a todos que tocaram.

Eu costumo usar ele em minhas aulas de animação exibindo-o duas vezes: uma com a trilha, e uma segunda em que faço ao vivo um "comentário de diretor" enquanto as cenas se sucedem; um dia ainda pretendo gravar estes comentários.

Também tenho uma versão com audiodescrição, com a qual fui presenteado por um festival inclusivo.

Uma vez exibi esta versão no Instituto Benjamin Constant no Rio, e um dos cegos presentes declarou, para minha surpresa, que era a primeira vez que ele conseguia entender como eram feitos os desenhos animados!

Então recebo agora mais este presente, que é esse texto do querido Wilson Lazaretti sobre o "quarentão"!

Muito obrigado!

Abraços animados,

Marcos