segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Homenagem a Léa Ziggiatti

 


No dia 16 de janeiro, faleceu em Campinas Léa Ziggiatti, um dos nomes mais importantes da cultura e da arte em Campinas. Por mais de cinco décadas foi a mantenedora do Conservatório Carlos Gomes, entidade fundada por seu avô em 1927 como uma escola de música, mas que se consolidou como um centro de artes, recebendo inúmeras modalidades e abrindo portas para muitos talentos.

A história do Núcleo e da carreira de seu fundador, Wilson Lazaretti, o Wal, não teria sido a mesma sem a inspiração da D. Léa. 

Wal compartilhou suas memórias em 2 pequenos textos, que você pode ler abaixo. 

O desenho é um convite para a inauguração do coreto que ficou por muito tempo em frente ao conservatório. Era o ano de 1976.

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Quem Sabe!

Escrito por: Wal 

19/01/2024


A Léa Ziggiatti Monteiro foi-me apresentada por Alberto Camarero nos idos de 1975. Ela queria para o Conservatório Musical Carlos Gomes alguém que desse aula de “cineminha” para crianças, oferecendo, assim, mais um complemento para as crianças. Ali, no Conservatório, havia inúmeras atividades para os alunos, além da música. Na época, a bitola cinematográfica, o super 8mm, estava em moda, tornando seu acesso facilitado para os iniciantes em “cineminha”. (- Daqui para frente não vou usar mais este termo porque não se tratava, nem se trata de um cinema menor. Cinema dá trabalho em qualquer bitola que se possa produzir, aliás essa premissa vale para todas as artes.) 


Algumas coisas já disse no decorrer de nossa amizade sobre a Léa, mas acho que vale a pena repeti-las porque ela foi alguém muito importante na minha vida. Investiu em mim, sem ao menos me conhecer direito. Claro, eu tinha boas referências como o próprio Alberto e o Egas Francisco, e ela me deu as crianças para o experimento em desenho animado. Ela foi a pedra fundamental sobre a qual ergui minha carreira, isso há 49 anos atrás. (- Um aparte aqui: para quem quer viver a vida toda, 49 anos não é nada.)


Ela era uma grande incentivadora das minhas artes com as crianças; me atendia em quase tudo que eu precisava para desenvolver as aulas. Chegamos até a brincar com fogo em uma das filmagens em que as crianças queriam representar o filme INFERNO NA TORRE, aliás, gênero que nunca mais saiu dos campos de concentração de Hollywood. Hoje existem coisas muito piores, mas têm audiência, e isso é que basta. 


O Conservatório Musical Carlos Gomes era nesta minha época um local de grandes encontros, não só para os professores da instituição, mas de todos os artistas jovens e para aqueles que estavam um pouco além de suas juventudes. 


O Conservatório propiciava um ambiente de crescimento intelectual e artístico para todos, fonte em que todo artista deve beber e, principalmente, embebedar-se! 

Ah! E quem não brigou com Léa Ziggiatti? Quase todo mundo, mas isso é um episódio que cada um pode contar seguindo suas razões. Apesar de tudo, seu gênio a enriquecia, “todo mundo é assim mesmo”. No meu caso, foi no “azul da minha adolescência”, porque nela os sonhos voam, ultrapassam a estratosfera. A liberdade que supomos que temos faz com que tudo que está em nosso redor seja contra a gente, e por isso é preciso caminhar solitário, para a frente e para cima se for possível. É terrível, mas é a iniciação pela qual devemos passar, felizmente! 


Vendo a Léa com o olhar que tenho hoje, sinto-me próximo não apenas uma grande mulher, mas de uma grande árvore, em cuja sombra posso deitar-me para sonhar.


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O Conflito dos acetatos. 

Escrito por Wal em 27/11/2022.


O palco desta epopeia foi nos domínios da Casa de Chocolate, mas iniciou-se na rua Regente Feijó, na sede do Conservatório Carlos Gomes à época de 1975, em Campinas, SP.

Eu, com 21 anos de idade, ingressei no Conservatório Carlos Gomes como professor de “Cineminha”. Digo de passagem que esta palavra nunca deveria ser utilizada, mesmo quando se trata dela para se falar com as crianças. Quando se quer falar com elas sobre cinema, simplesmente deveríamos dizer “Cinema”. 

Fui membro do Grupo Pesquisa 70 em Valinhos, um grupo super importante na minha vida artística. Nunca tive outra vida, a não ser a artística, embora tivesse trabalhado na antiga Gessy-Lever, na Receita Federal, no Aeroporto de Viracopos e também na TV Cultura de São Paulo. Após o Conflitos dos Acetatos, em 1976 fundei o Núcleo de Cinema de Animação de Campinas, uma das entidades mais antigas do mundo em se tratando de desenho animado feito por crianças. 

Todas estas alçadas tiveram sua pedra fundamental no Conservatório Carlos Gomes, na figura da Eterna, senão também Divina, Léa Ziggiatti. Minha vida teria sido muito diferente, ou muito menos animada, se ela não tivesse investido em mim. Fui apresentado a ela por Alberto Camarero, que até hoje é meu amigo. Léa soube que eu gostava muito de cinema e confiou plenamente na apresentação do Alberto. Sem muito me conhecer, já me deu um grupo de crianças para iniciar o grande laboratório que seria mais tarde, após o Conflito dos Acetatos, o Núcleo de Cinema de Animação de Campinas. 

As crianças no Conservatório, além de aprenderem música, frequentavam outros cursos de artes, inclusive artes plásticas e teatro. Foi aí que introduzi mais um curso de artes para as crianças, desta vez de “cineminha” super 8mm. Mas com o decorrer do tempo, o curso tornou-se de desenho animado e não de cinema, porque as crianças desenhavam muito e assim o curso seguiu esta direção.

Confesso que tinha apenas uma vaga ideia de como a arte da animação funcionava. Hoje sei um pouco mais, mas creio que todo ser humano tem o essencial de conhecimento para compreendê-la sem questões mirabolantes. Comprei na Lojinha do Artista duas revistas da Editora Americana Walter Foster sobre animação. Eram sobre os desenhos horríveis de Preston Blair, um dos papas da animação americana e que tem, até hoje, muitos seguidores e muito mais imitadores.


A primeira aula foi num sábado, logo às 9h da manhã. Durante a semana eu trabalhava no aeroporto de Viracopos e atendia os aviões piratas. Era uma operação que se chamava de desembaraçar os aviões, através das papeladas da Alfândega, para que pudessem descarregar suas cargas exóticas, tais como, alho, frutas, serpente Naja vinda Índia, etc. As frutas eram especiais e vinham do Chile. Sempre uma caixa de fruta era propositadamente quebrada para que os carregadores pudessem comê-las. Era uma festa no compartimento de cargas do avião. As caixas quebradas eram de madeira, que serviram adequadamente ao propósito da minha primeira aula para as crianças no Conservatório Carlos Gomes. Construímos um teatro de sombras e marionetes com os pedaços destas caixas de madeira. O tema foi Romeu e Julieta de William Shakespeare. O que eu sabia fazer era serrar, pregar, bater martelo, além dos ensinamentos técnicos de um sólido curso de Mecânica Geral na Escola SENAI Roberto Mange de Campinas SP. Este curso me ajuda até hoje, nos projetos que tenho de lançar mão para completar a minha sobrevivência financeira. Por causa disso, algumas pessoas me chamavam, através da herança de Disney, de professor Pardal. Mas ficaria mais grato, se fosse comprovada nossa participação em outras vidas, e que eu fosse chamado de engenheiro egípcio construtor de Pirâmides, ou o inventor do parafuso.

Meu agradecimento à Léa se avoluma, ainda mais agora em que quase estou chegando à maturidade absoluta, porque no Conservatório eu gozava da maior liberdade possível com as crianças. E liberdade é fundamental para tudo o que se quer fazer na vida, ainda mais quando se tem apoio para exercê-la. A Léa é uma figura que, quer queira, quer não, está presente em todas as liberdades dos professores e alunos do Conservatório até hoje. Quem já “brigou” com ela sabe bem do que estou falando.

Este grande laboratório, o meu primeiro e fundamental experimento, moldou a minha vida. Falando assim, parece que vou viver a vida inteira, mas este conceito de viver a vida inteira merece um certo conteúdo de eloquência, porque apesar da minha modesta carreira de animador e professor, realizei no Núcleo de Cinema de Animação de Campinas e na Universidade Estadual de Campinas, alguns eventos consideráveis. Meu plano de ambição nunca foi o Oscar, mas quase cheguei a um Platino no México em 2018.

Ali, o Conservatório tornou-se um centro de amizade e outras coisas mais, pois ficava-se  amigo dos músicos, atores, atrizes, funcionários e frequentadores. Ali também construí alguns cenários de peças de teatro infantil, além de participar desastrosamente de um grupo de músicos tocadores de flauta doce. Meu instrumento musical era uma flauta doce contralto, presente do meu tio Osvaldo. Entretanto, música nunca foi, nem será o meu forte, mas como me disse uma vez a minha grande amiga Joseida Frizzarini, que tinha fé na existência de uma outra vida: “vá se preparando para uma outra vida, Wal! Lá sim você poderá se tornar um grande músico pianista”. O que me valeu foi apenas a teimosia, pois comprei um piano de armário sobre o qual soco meus dedos algumas vezes por semana.

Mas nem tudo foi um mar de rosas! E aí entra o Conflito dos Acetatos. Com o desenvolvimento da minha didática de animação, voltado à época aos padrões da animação publicitária que se praticava em São Paulo, convenci a Léa de comprar mil folhas de acetato. Material caríssimo, cerca de um dólar por folha em 1976. Foi um grande investimento a ponto de causar inveja aos demais cursos do Conservatório. Mas como o curso de animação estava se tornado conhecido, a TV Cultura até começava a exibir os desenhos produzidos pelas crianças, valia a pena tal investimento.

Acetato é uma folha de plástico transparente onde os desenhos eram traçados à nanquim, pela frente, e pintados por detrás. Este material facilitava muito a animação, pois sendo transparente, o animador não precisava se preocupar com os cenários. E assim a produção dos desenhos animados teria mais chances e qualidade para se tornarem mais conhecidos do público fora dos domínios do Conservatório.


Não usamos de pronto os acetatos, porque achava que precisaríamos de mais experiência em animação. E continuamos a exercitar as experiências animadas em super 8mm. O Conservatório mantinha toda a sua efervescência, muitos alunos, e por causa disso caí nos emaranhados que as razões da natureza humana produz, ou seja: muitos alunos pagando caro os cursos e eu ganhando pouco. Entrou aí o conflito de uma filosofia parecida com o que seria assim: um socialismo de cima para baixo ou um capitalismo de baixo para cima! Hoje, todo mundo sabe que para se ter um negócio, qualquer que seja ele, e se tem alguém que trabalha para você, você vai ser sempre o explorador. Esta questão se repetiu muito ao longo da minha vida, mas creio que a Léa a compreendia bem à época. Bom, saí do conservatório e achei justo levar comigo os acetatos como forma de compensar a minha suposta perda financeira. Na verdade, um roubo sob o ponto de vista social, mas ao mesmo tempo uma atitude de um professor injustiçado, enfurecido, julgando que seus próprios atos eram corretos. 

Poxa, pensando bem agora,  do alto da maturidade, eu poderia ter tomado uma outra atitude que não me fizesse arrepender de tê-la feito da forma como a fiz. Mas o estágio da vida na juventude é uma fase legal da vida, porém perigosa, quando se encosta em atos mal pensados. Isso porque a Juventude não se permite a ter atos bem pensados!  Entretanto, “o que é lícito para um adulto, não é lícito para um jovem.”

Neste ínterim, passei a dar aula de desenho animado no Conservatório Musical Campinas, uma instituição concorrente do Conservatório Carlos Gomes. Aquele conservatório, se não me engano, tinha sido encampado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Fiquei pouco tempo por lá, porque, mais uma vez, entraram em jogo as questões do relacionamento humano, que considero o pior de todos os legados da humanidade. A relação com a Dona Olga, proprietária do Conservatório Musical Campinas, não foi tão boa assim. Para dizer a verdade foi um pouco pior do que com a Léa, porém foi mais curta. Fiquei lá apenas alguns meses.

Este episódio deixou a Léa furiosa e não sei se foi por causa dele, com ele, ou não, a Léa, juntamente com o seu marido Bira, foram até a minha casa para resgatar os acetatos. Nem precisou chamar a polícia! Na noite anterior eu tinha feito uma pequena lista das coisas que tinha de falar com a Léa e para não esquecer de nada. A lista me ajudou bastante. Entreguei o pacote de acetatos após uma discussão, destas padronizadas e da qual não me lembro de nada, a não ser dos gestos e os tons poucos alterados das vozes. Minha mãe, a Dona Orlessi, ficou ouvindo tudo, ao mesmo tempo em que trabalhava na cozinha, mas nunca fez nenhum comentário a respeito. Depois deste Conflito dos Acetatos, Léa e eu não nos falamos mais por alguns anos.

Mas o tempo veio e passou, nada melhor do que ele para amadurecer as coisas. Nossa amizade foi-se reatando aos poucos e hoje nosso relacionamento é melhor do que antes. Fico muito feliz em também fazer parte das comemorações do nonagésimo quinto aniversário do Conservatório Musical Carlos Gomes.


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

De volta à comunidade apinajé

 



Em dezembro de 2022, um grupo do Núcleo esteve na Escola Estadual Indígena Mãtyk, em Tocantinópolis-TO, para ministrar oficina com crianças do povo apinajé. Relembre aqui.

O resultado da oficina gerou uma breve animação, feita pelas crianças, que contaram “A História do Sol e da Lua”, lenda que explica o surgimento do povo apinajé. Saiba mais.


Com desejo de ampliar o trabalho feito em 2022, em parceria com a Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), um grupo do Núcleo e alunos da Universidade  voltou à comunidade em dezembro de 2023, agora para trabalhar junto com os professores indígenas da aldeia. O objetivo principal é que eles possam guiar as crianças em suas produções, apresentando as técnicas de animação para seus alunos, afinal, agora a comunidade tem sua própria mesa de luz, uma de filmagem e um zootrópio.




Para a equipe do Núcleo, foi um lindo encerramento para 2023, que deixou as portas abertas para um 2024 ainda mais cheio de animação.

“Com contribuição do Cassiano Sotero Apinagé, diretor da escola e que fez seu mestrado sobre a origem dos apinajés, acompanhamos a professora Aline, da UFNT, em seu projeto de ouvir anciãos das comunidades da região para registrar suas versões da ‘História do Sol e Lua’. Pudemos visitar uma anciã, de 80 anos, e um outro senhor, que narraram suas versões em sua própria língua, traduzidas para nós com ajuda de intérpretes.”, contou Maurício Squarisi.

“Além de trabalhar com os professores indígenas da escola, destinamos um dia da viagem para trabalharmos com esses estudantes bolsistas da UFNT, que estão envolvidos no trabalho de escuta dos anciãos, que vai resultar em um novo filme sobre a origem do povo apinajé, ilustrado com desenhos de crianças indígenas”, completa.

Para Lazaretti, “Este projeto apinajé já foi mais um desdobramento do projeto geral HISTÓRIA DE TODOS OS POVOS, em que temos procurado trabalhar com as etnias indígenas de São Paulo e de todo o Brasil. Como um outro desdobramento, aponto a criação de uma disciplina de extensão que vou lecionar no Departamento de Artes Visuais do IA/Unicamp,  presencial e remota ao mesmo tempo, para atender estudantes, principalmente indígenas, de todo o Brasil.” 

As produções de dezembro seguem em andamento, outras novidades virão em 2024, mas é hora de relembrar algumas fotos da viagem!